Wednesday 1 June 2011

Asneira

A benjamim da família é uma menina de quatro anos com grandes olhos pretos, pele morena, caracóis dourados, boca grande e sorriso rasgado.
Ao contrário da mãe, é muito feminina.
Só quer usar saias (calças só nos dias de ginástica e de natação) e nunca sai de casa sem (pelo menos) um batom na mala.
Come a sopa com receio de ser removido o verniz (deixo a acetona à vista em cima da mesa).
Usa e abusa de acessórios. Ainda hoje de manhã fui acordá-la e encontrei-a a dormir na cama com os óculos de natação (cor de rosa) na cabeça e uma malinha rosa enfiada no braço.

Mas este pequeno ser com ar doce e angelical tem também um lado um tanto ou quanto selvagem.

Trepa vedações e paredes de escalada sem qualquer receio, corre ao lado dos irmãos que andam de bicicleta, desce os escorregas de cabeça e com a barriga para cima…
Chora quando lhe apetece (função tear on demand) e sempre que acha que vale a pena.
Faz placagens “à wrestling” e aplica chaves de pescoço a qualquer irmão que procura aproximar-se dela para beijá-la ou abraçá-la.
Por vezes até rosna…

Esta versão Mr Hide da minha filha mereceu um “petit nom” carinhoso cujo o uso está reservado em exclusivo aos membros mais próximos da família: “O Bicho”.

“O Bicho” surge quando a princesa se sente apertada, derrotada, irritada, melindrada, contrariada ou simplesmente cansada.

O meu marido em particular aprecia muito esta mutação da personalidade e tudo faz para possibilitar exibições do Bicho.

Dia da semana, depois da escola, na cozinha em casa.

A minha filha passa ao lado do pai que não resiste e dá-lhe um caldo.

“Pai!!!”

Retribui de imediato o gesto com uma palmada no rabo do pai.

Começa uma troca de “carícias” entre Pai e filha. A pequena tenta dar e fugir mas o Pai consegue sempre acertar-lhe em último.

“Já sabes que sou sempre o último a dar…”

Vejo os primeiros sinais da transformação a aparecer.
O olho brilha.
Ri-se mas sinto que está com vontade de chorar.
De raiva serra e fala entre os dentes.

“Já estou a começar a ficar irritada…” expressão que arranca uma gargalhada ao pai.

“Estou a ficar muito irritada… Daqui a pouco digo uma asneira…”

Troco um olhar surpreendido com o pai que, divertido, aumenta a cadência dos toques.

“Dizes uma asneira? Então diz lá...”

“Se continuares vou dizer mesmo…”

“Diz lá…”

“Vou dizer…”

Quero saber o que vai sair daí. Fico a observar a luta que se desenrola à minha frente.

“Estou à espera…”

“Olha que digo mesmo…”

“Quero ouvir isso…”

“Tu é que pediste: ASNEIRA!”

Soltamos uma gargalhada.

“O que é? Eu disse que dizia: asneira.”

Saída airosa de uma situação espinhosa…

Insanity is hereditary – you get it from your children
Sam Levenson


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